Folks,
postei a íntegra de uma matéria da Revista Veja dessa semana, por tratar de uma verdade não só sobre nossos documentários, mas também, sobre uma série de filmes. Diferentemente de obras como ILHA DAS FLORES (post anterior a este)que tem um texto rico e inteligente voltado para argumentação da pobreza na região metropolitana de Porto Alegre.
Cena de Sumidouro: se os miseráveis fossem cineastas, saberiam captar dinheiro público
A melhor passagem do documentário Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, acontece quando a equipe se aproxima de uma moradora do Morro da Babilônia. Ela está sentada na escada na frente de casa, descascando batatas para uma maionese de réveillon. Cinco equipes passavam o dia na favela entrevistando os moradores e registrando como eles viveriam o último dia de 1999. Quando percebe as câmeras, a mulher diz: "É filmagem para aparecer onde? Espera eu me arrumar, mudar o visual". O cinegrafista é rápido ao dizer que não, que daquele jeito está ótimo, o que faz a mulher soltar uma gargalhada de quem entendeu tudo: "Ah, você quer é pobreza mesmo!". A frase é a descrição certeira de um gênero fértil de cinema brasileiro: os filmes feitos para retratar os pobres como vítimas. O É Tudo Verdade, festival de documentários que começou na semana passada em São Paulo, está repleto deles. Os filmes falam sobre um ex-militante do MST do sertão de Alagoas, famílias mineiras pobres, moradores do bairro paulistano de Cidade Tiradentes, índios, quilombolas e ciganos (ciganos de onde? Do sertão de Alagoas). Essas fitas são produzidas em quantidade digna dos enlatados de Hollywood, e são tão parecidas entre si que quase configuram uma área de "estudo" – algo assim como a "pobrologia".
O gênero tem suas regras. A primeira é a melancolia. Um bom filme sobre pobres precisa ser triste. Veja o caso de Sumidouro, de Cris Azzi, que mostra famílias desalojadas por causa da construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Vale do Jequitinhonha. Muitos dos desalojados que aparecem ali gostaram da mudança – ganharam casa nova com energia elétrica e em frente a uma rua pavimentada. Mas o filme é triste, triste. Exibe uma estrada de terra durante 47 segundos, uma dona-de-casa andando pela rua em 75 segundos e ela mesma, logo depois, em irritantes 54 segundos. Em Moro na Tiradentes, com direção de Henri Arraes Gervaiseau e Claudia Mesquita, é a mesma coisa. As entrevistadas parecem felizes porque Cidade Tiradentes, o bairro mais afastado do centro paulistano, está menos violento e enfim ganhou agências bancárias e uma filial das Casas Bahia. Mas o diretor só quer saber de melancolia, ainda que precise fazer perguntas óbvias e sugestivas, do tipo "Não deve ter sido fácil criar quatro filhos, né?".
Outra regra da pobrologia é captar imagens que mostrem beleza na miséria. Primeiro a câmera pega o indivíduo a distância, num cenário impactante. Depois se aproxima até que seu rosto marcado estoure o enquadramento. Um exemplo é Estamira, documentário de 2004 dirigido por Marcos Prado sobre uma catadora dos lixões cariocas que sofre de problemas mentais graves. Psiquiatras não costumam achar bela a imagem de um doente mental sofrendo com seus sintomas. Mas os pobrólogos enxergam na esquizofrênica Estamira uma profetisa que dispara seus vaticínios entre montanhas de lixo revolto.
É fácil entender o que está por trás desses filmes. Um pobrólogo pensa conforme o marxismo didático, para o qual os pobres são do bem e os ricos são exploradores que fumam charuto. Como em geral não nasceu na miséria e tem escolaridade suficiente para preencher os complicados formulários das leis de incentivo à cultura (um curta-metragem custa em média 50 000 reais aos cofres públicos), o pobrólogo sente culpa – e seu filme vira uma expiação. A idéia do bom selvagem, segundo a qual o ser humano nasce bom e é corrompido pela sociedade, tem outro corolário: retratar o pobre é "resgatar" um Brasil puro e autêntico. O problema é que os pobres, para desilusão dos documentaristas, não são interessantes só por serem pobres. É comum, nesse tipo de filme, o pobre passar por silêncios constrangedores durante uma entrevista no sofá de casa, com cara de quem pensa "por que essa gente ainda está me filmando se eu não estou falando nada de mais?".
Claro que existem situações que merecem registro. Um filme é um excelente meio para apresentar fatos desconhecidos, colocar um assunto em pauta e esquentar a agenda pública. Os Carvoeiros, com direção do inglês Nigel Noble e roteiro de José Padilha, ajudou a transformar a vida de crianças que trabalhavam em carvoarias pelo Brasil. Também há casos em que o pobre salva o filme da pobrologia, como Genivaldo Vieira da Silva, retratado no documentário O Tempo e o Lugar. Líder de invasões do MST em Alagoas no fim dos anos 80, ele é hoje um líder comunitário maduro, que lamenta as práticas do passado. E o documentarista Eduardo Escorel escapa por pouco de criticar a mudança, fazendo um bom paralelo entre a trajetória do país e a do personagem. Hoje, Genivaldo negocia com os adversários políticos, veste camisas engomadas e está bem contente com a renda que seus sítios produzirão. Mostra que pobre, na verdade, não gosta de pobreza. Ao contrário dos nossos documentaristas.
31.3.08
Tratados de "pobrologia"
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